As garantias do devido processo legal estão postas no artigo 5º, incisos LIII[1], LIV[2] e LV[3] da Constituição brasileira, os quais, em suma, preconizam a necessidade de autoridade competente para o julgamento, havendo impossibilidade de privação de bens ou da liberdade sem um devido processo legal, assegurando-se aos litigantes em processos (administrativo ou judicial) e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa.
Já o impeachment (ou afastamento) dos chefes do Poder Executivo encontra respaldo legal no artigo 85[4] da Constituição, o qual apresenta o rol dos crimes de responsabilidade praticados pelo chefe do Executivo, e artigo 86[5], que estabelece o quórum mínimo para acusação e julgamento dos mesmos. Já o artigo 51, inciso I[6]; artigo 52, inciso I[7], e também seu parágrafo único, trazem a questão da competência para o processamento de um pedido de afastamento, cabendo ao Congresso Nacional autorizar a abertura do processo e ao Senado realizar o julgamento. O procedimento do afastamento, contudo, é previsto diretamente em legislação infraconstitucional, a saber, a Lei 1.079/50.
Ocorre que a Lei 1.079/50 foi atacada pelo Partido Comunista Brasileiro quando da ADPF 378, na qual se buscou discutir a (in)compatibilidade de alguns de seus dispositivos com a Constituição. Um dos principais aspectos residia justamente na questão de violação ao contraditório e a ampla defesa no primeiro momento do processo, isto é, na votação de admissibilidade do processo realizada no Congresso. Quanto ao tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Câmara dos Deputados apenas autoriza a abertura do processo de impeachment, não havendo, portanto, ofensa aos princípios aqui mencionados.
No cenário brasileiro, nos casos de afastamento de Chefes do Executivo, toca ao Senado Federal realizar o julgamento, não cabendo ao Judiciário intervir:
[...] ao Judiciário não cabe interferir nos critérios do poder discricionário do Senado Federal quanto à oportunidade ou conveniência, nem adentrar no mérito de seu julgamento [..] (STF, 2015).
Tais aspectos já foram, por sua vez, objeto de apreciação em situações concretas, submetidas à análise do Supremo Tribunal Federal ao longo da recente história de redemocratização do país.
No Mandado de Segurança n. 34130, impetrado em favor da Presidente Dilma Rousseff, a parte demandante alegou uma série de fatos, todos relacionados ao direito de ampla defesa, sustentando, dentre outros aspectos, que: a) foram extrapolados os limites constitucionalmente fixados para a denúncia perante a Comissão Especial, o que dificultaria a defesa em virtude da constante modificação dos fatos imputados; b) ampliação dos fatos ensejadores da prática de crime de responsabilidade sem sua notificação prévia; c) abordagem de aspectos alheios à denúncia, o que inviabilizaria a construção de uma defesa materialmente hábil, ante a mutação das imputações; d) juntada de documentos estranhos ao objeto da denúncia; e) indeferimento de prazos ante a modificação acima mencionada para exercício de defesa; f) indeferimento do direito à voz do defensor constituído.
Quanto a este aspecto, prevaleceu o entendimento de que a Câmara dos Deputados faz somente um juízo de admissibilidade, não havendo que se falar de afronta às garantias processuais da acusada:
Tratando-se de mera condição de procedibilidade para a instauração do processo de Impeachment, inexiste fumus boni iuris quanto às alegações de ofensa à ampla defesa e ao contraditório, consubstanciadas na ausência de notificação da denunciada sobre a realização de esclarecimentos acerca da denúncia e posterior indeferimento de pedido de reabertura de prazo para a manifestação da defesa, juntada de documento estranho ao objeto da denúncia e ausência de manifestação do Procurador da impetrante na sessão de leitura do relatório na Comissão Especial. Isso porque, nessa fase ainda não há acusado ou litigante.
Já na esfera do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem dispõe, em seu art. XX, que toda pessoa legalmente capacitada tem o direito de tomar parte no governo de seu país, seja direta ou indiretamente, por meio de representantes, bem como de participar das eleições, por meio do voto secreto, de forma genuína, periódica e livre, conformando, assim, o princípio da soberania popular.
Essa proteção aos direitos políticos repete-se na Convenção Americana dos Direitos Humanos, em seu art. 23, que garante a todos os cidadãos o direito de participar na condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos; de votar e de ser eleitos em eleições periódicas autênticas, realizadas por sufrágio universal e igual, por meio de voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores; e de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
Estabelece ainda o Pacto de San José que uma lei pode regular o exercício dos direitos políticos contidos no citado art. 23, desde que essa restrição seja pautada exclusivamente por motivos de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou por condenação proferida por juiz competente, em processo penal.
Tanto a Comissão lnteramericana de Direitos Humanos quanto a Corte IDH já tiveram oportunidade de manifestar-se sobre essas vedações em casos como Yatama vs. Nicarágua (2005); López Mendoza vs. Venezuela (2011); Gustavo Petro Urrego vs. Colômbia (2014), nos quais o foco reside no direito de ser eleito - e de permanecer eleito – em face de decisões proferidas por outros órgãos, que não configuram condenação emanada por juiz competente, em processo penal.
Os referidos dispositivos legais asseguram a liberdade de apresentar-se como candidato, concebida como uma forma de participação política. Os limites de atuação do eleito no exercício do mandato devem, por sua vez, constar na Constituição, bem como os possíveis mecanismos de controle que incidem sobre ele. Não há - ou não deveria haver, portanto - espaços discricionários para a interferência no exercício do mandato de Presidente democraticamente eleito, restringindo-se este às hipóteses expressamente previstas na Constituição.
Nesse sentido, pode-se conceber os juízos políticos como um mecanismo contramajoritário de governo, isto porque, uma vez configurada hipótese de instauração de um juízo político, o Congresso poderá decidir pela destituição do Presidente, ainda que ele tenha sido eleito com maioria absoluta de votos. Trata-se, pois, de um instrumento que “retira democracia da democracia”, o que justifica a sua necessária excepcionalidade.
Situações como descontentamento ou frustração com a atuação do Presidente, ou até mesmo danos ou rupturas na confiança em relação ao programa de governo não devem ensejar um juízo político, pois a democracia também deve ser tida como um aprendizado do eleitorado.
Ao admitir-se a utilização de juízos políticos como forma de depurar crises diversas no governo, a lógica democrática torna-se autoritária, constituindo-se o voluntarismo na utilização do impeachment em claro atentado contra a Constituição, gerando uma situação exatamente oposta àquela que o juízo político visa a proteger.
Nesse sentido, nem mesmo a regularidade do procedimento de impeachment pode legitimar a sua origem. O respeito às regras procedimentais não tem o condão de legitimar - constitucional e democraticamente - o resultado do juízo político. Mesmo diante de um cenário de clamor popular (algo de difícil exame, considerando-se a complexidade dos fatores envolvidos), este não deve ser considerado como um motivo para o acionamento do mecanismo de impeachment. A revisão do resultado das urnas deve dar-se por meio democraticamente legítimo.
Diante das razões expostas, pode-se afirmar que os juízos políticos podem atentar contra os direitos políticos de um mandatário eleito democrática e constitucionalmente quando apresentam origem e motivação à margem da Constituição, ou seja, quando possuem fundamento meramente político.
Assim, conclui-se que a utilização de mecanismos como o impeachment deve dar-se em caráter excepcional, justamente porque tem a função de defender a Constituição e a figura do Presidente (e não a sua pessoa), eleita democraticamente.
Partindo-se das normativas analisadas (constitucional e interamericana), verifica-se não haver menção expressa acerca da necessidade de o julgamento ser realizado pelo Poder Judiciário, contanto que haja acesso à jurisdição e a um processo justo – quer dizer, observando-se os princípios do contraditório e da ampla defesa.
Tem-se, por conseguinte, que, no presente caso, não há de se falar em ponderação propriamente dita, mas sim em concretização do direito humano e fundamental ao devido processo legal. Cabe verificar se, durante o julgamento, foram observadas as garantias processuais clássicas – ampla defesa, contraditório, publicidade dos atos, etc. – além de outras que ganham destaque nos casos de julgamentos praticados por órgãos que não o Judiciário, tais como o direito a juízes independentes, imparciais e com formação jurídica; jurisdição plena e possibilidade de recurso.
Assim, tanto no caso hipotético como no caso do processo de impeachment, tem-se que a própria Constituição confere legitimidade para que outro órgão julgue o afastamento. No caso brasileiro, os Senadores estão investidos de prerrogativas constitucionais que lhes conferem independência, não lhes sendo exigido que possuam formação jurídica (o que eventualmente pode, contudo, proporcionar níveis insatisfatórios de tecnicidade ao julgamento).
[1] LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;
[2] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
[3] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
[4] Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:
I - a existência da União;
II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;
III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
IV - a segurança interna do País;
V - a probidade na administração;
VI - a lei orçamentária;
VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.
[5] Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
[6] Art. 51. Compete privativamente à Câmara dos Deputados:
I - autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado;
[7] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;
